As Piedosas: gótico, contemporâneo e pura literatura
![]() |
Federico Andahazi |
Fosse pelo título eu jamais teria
sequer comprado esse livro, sorte que estava de bom humo e com tempo para ler
as orelhas. Eu o adquiri em 2004. Até
então não conhecida o outro livro de Federico Andahazi, O Anatomista, que ganhei o ano passado de uma amiga que costumo
visitar na Argentina.
A
premissa do livro se baseia em alguns fatos reais acontecidos na Villa Diodati,
na Suíça, ocasião em que Lord Byron e seus amigos passavam férias chuvosas,
presos dentro de casa e tiveram a idéia de quebrar o tédio escrevendo contos de
terror. Nascem daí, dois dos mais famosos livros da literatura fantástica Frankenstein e O Vampiro de Polidori. É valendo-se desse acontecido que Andahazi
cria a fantasia gótica de As Piedosas.
Eu
particularmente considero falta de criatividade se basear em fatos reais ou
usar como personagens pessoas que existiram, fujo de livros assim. Porque em
parte também acho que autores desse tipo, usam da liberdade poética para
mostrar tolices e até criar fatos que o senso comum desavisado passa a aceitar
como realidade. Entretanto a imaginação de Andahazi é tão vivaz e atrevida que
me conquistou; enfim, dei o braço à torcer.
Eu
não esperava que ainda hoje pudesse ser criado um enredo gótico tão requintado
e genuíno, acreditava que criaturas como, Melmoth, o Verme Branco, Drácula,
Helen Vaughan e a Esfinge de Maximiliano Coelho Neto, faziam parte de uma
literatura engessada às portas do século XX, que jamais daria novos frutos. Mas
Andahazi, latino do Novo Mundo, mostra possuir conhecimento e domínio da
essência gótica no seu estilo mais clássico!
Mas
um conhecedor da literatura americana, não se surpreende ao ver que Andahazi,
um argentino, possui tais ferramentas. Afinal, ele é patrício de Jorge Luis
Borges, um mestre dos contos fantásticos. Borges sozinho é um pilar da
literatura fantástica, e sem dúvida sua influência sobre o gosto literário dos
argentinos que permitiu a Andahazi, e outros, um contanto constante e
consistente com a literatura fantástica do velho mundo. Esse contato é algo que
falta ao Brasil, cujo mercado literário é fraco no gênero e só agora começou a
dar pequenos passos, entretanto não vejo grandes progressos à curto prazo.
Somente agora, não faz muitos anos é que a Landmark, decidiu desbravar as
bibliotecas do além mar e trazer para o público tupiniquim um marco da
literatura britânica, que chega aqui com 200 anos de atraso: O Último Homem de Mary Shelley. E fico
desconcertado em ver que tem gente que acha que Mary Shelley só escreveu Frankenstein!
![]() |
a edição brasileira, acreditem, ela existe |
Mas
isso não é culpa do grande público, é culpa dos editores preguiçosos e obtusos
(para não dizer coisa pior) que são incapazes de oferece ao povo coisas melhor
do que os genéricos da Saga Crepúsculo.
E pior, tem gente que acha que tais coisas são góticos modernos!
As Piedosas de F. Andahazi é um desses
lapsos de lucidez que atingem algum editor fuinha e sai para as livrarias como
que em segredo, para toparmos neles por acidente. Digo isso porque a Cia das
Letras não lançou o livro por ser um belo exercício gótico, que vendeu milhões
lá fora, mas só porque a Relume Dumará passou na frente e editou polêmico O Anatomista. Então uma editora do porte
da Cia não podia ficar atrás, apenas por isso os brasileiros tem a oportunidade
de conhecer o livro.
Quanto
à trama, se passa no séc. XIX e fala sobre a vida agitada das lindas gêmeas
Legrand, duas Vênus que seriam perfeitas, não fosse pelo abominável apêndice
teratômico que é a sua trigêmea, Annette Legrand.
Annette
é uma aberração circense, algo que a medicina do século XVIII chama de
preformação. Seria a formação inacabada de um feto que se desenvolve à partir
de tecidos geminais remanescentes da gestação. Algo que pode vir a tornar-se um
teratoma, um tipo de tumor fetal, verdadeira aberração da natureza que muitas
vezes nasce acoplado a uma criança como um gêmeo mal formado, e quando extraído
não é mais que um amontoado de dentes, pêlos, couro e veias. Muitas pessoas
chegam a extrair tal coisa depois de adultas, quando percebem dores localizadas
nas regiões íntimas do corpo.
Stephen
King utilizou esse mesmo recurso em A
Metade Negra. Outro que brincou com o tema é Henry S. Whitehead, no
excelente conto Cassius, ambos com
menos glamour que As Piedosas.
No caso de
Andahazi, seu teratoma sobrevive e cresce, um feito que para a ciência, já é
por si só fantástico. No nascimento, o pai das meninas fica transtornado ao ver
que a terceira filha é um amontoado de pele e pelos (semelhante a um Shih Tzu
gigante) e procura matá-la. Entretanto, percebe que a vida de outras duas meninas
parece conectada a sobrevivência do pequeno monstro, e para que as outras cresçam
com saúde, ele decide cria-la em segredo.
Enquanto as
beldades Babatte e Colette varrem a Europa com seu apetite sexual e causam a
ira das mais castas senhoras do high society, Anette vive nos subterrâneos de
Paris, onde, consegue acesso às bibliotecas mais requintadas e ao
conhecimento, que ela devora com a mesma voracidade que as irmãs provam homens.
E é assim, tendo acesso aos livros e informações de qualquer lugar que deseje,
que Annette Legrand conhece John Polidori, médico e amigo (invejoso) de Lord
Byron, que sofre todo o tipo de humilhação, dele e dos outros companheiros de
viagens: Percy e Mary Shelley e Claire Clairmont, irmã de Mary.
![]() |
Polidori, o capacho de Lord Byron |
Assim que
Polidori chega á famosa Villa Diodati, descobre em seu quarto uma carta, vinda
de Annette, e essa é apenas a primeira de uma numerosa correspondência, que
lida por Polidori, nos permitirá conhecer mais Annette e suas irmãs. Annette
sabe que ele inveja as qualidades literárias de Lord Byron e Percy Shelley e
propõe ajuda-lo a obter tanta fama literária quanto seus amigos, desde que ele ajude-a
a obter uma substância da qual depende a vida dela e de suas irmãs.
Polidori fica
entre a abominação e ambição, cede a segunda e aceita as condições de Annette,
pois Byron propôs um concurso de contos de terror, no qual ele e os demais se
divertem caçoando da inaptidão literária do médico.
A história de
Andahazi me recorda muito o grotesco dos contos de E. T. A. Hoffmann, já que o
horror em si parece nascer mais do nojo do que o medo que Annatte inspirar.
Gosto de pensar (e não me aprofundei nessa tese) que a tríade Legrand é uma
metáfora sobre a literatura como um todo, e que Annette, em particular representa
a literatura marginal de todo o tipo, que todos rechaçam, mas que na maioria
das vezes nutre os outros ramos da literatura universal que são tão proclamados
e bem vistos. Andahazi sugere ao leitor uma ideia: já pensou em quantos livros
que você lê e adora não passam de fraudes grotescas! Ideias nascidas de forma
criminosa e mesmo assim tão queridas?
É um livro que
critica o passado e o presente da literatura, e portanto atemporal. E Annette é
a voz dos que estão por trás dos anonimatos, dos pseudônimos ou dos esquecidos
editoriais. O que é realmente a obra, quem realmente é autor? Como diz Annette
Legrand: “nada é mais duvidoso que a paternidade”.
Isso só me
recorda o fato recente (2002) de Yann Martel que recebeu o prêmio Man Booker
Prize por seu magistral A Vida de Pi
ou As Aventuras de Pi, e que foi
desmascarado por um jornalista inglês por ter plagiado o livro do brasileiro
Moacyr Scliar, Max e os Felino! Tolo
Martel, teve que admitir e dar o crédito a Scliar.
![]() |
edição argentina |
Acho que só
quem se dispor a ler o livro vai entender exatamente o que eu estou dizendo,
por a metáfora de Andahazi é violenta, e paradoxal já que inspirar sensualidade
e repulsa ao leitor. Tanta coisa pode ser extraída do livro: a tríade de irmãs,
semelhantes ás deusas pagãs da Lua. O acordo de Polidori e Anette, que recorda
Fausto e Mefistófeles. E Mesmo a distância e de modo bem relativo a narrativa
do argentino conversa com A Mãe dos
Monstros de Guy de Maupassant. E por fim, acho que Andahazi se inspirou as
irmãs Mirtha e Silvia Legrand atrizes argentinas quase centenárias, resta saber
por onde anda a terceira.
Diferente do
que faço, não vou destrinchar a novela aqui. Acho que no nesse caso quanto
menos eu disser melhor para provocar curiosidade. O que há nas páginas de
Andahazi é tão estranho e ousado, que o leitor não vai passar algumas páginas
sem antes ler alguns parágrafos uma ou duas vezes e ficar imaginando as cenas,
antes de continuar a leitura.
As Piedosas é esse tipo de livro, é
emblemático, parece um símbolo vivo e tardio de um vertente da literatura que
está praticamente morta: o gótico, e no entanto fala por todas as vertentes
literárias discriminadas. Quanto ao título do livro, ele permanece um mistério
para mim.
![]() |
Andahazi diante de seus livros |
Olá! Sou do Rio de Janeiro, comprei o livro recentemente e ao ler sua crítica, me sinto entusiasmada!
ResponderExcluirObrigada por suas palavras.