Vathek: o inferno atroz da Literatura, parte I

edição francesa em quadrinhos de Patrick Mallet


               Vicente Molina Foix, escritor, cineasta e crítico espanhol, diz que há quatro vertentes góticas, todas elas nascidas de quatro obras pioneiras da literatura gótica. É claro que ele não é o único a teorizar sobre as formas do gótico, mas prefiro a sua teoria às demais. Segundo ela as vertentes são: o gótico negro, o gótico ilusório, o gótico satânico, e o gótico exótico. As obras em questão seriam: O Castelo de Otranto de Horace Walpole, Os Mistérios de Udolfo de Ann Radcliff, O Monge de Matthew G. Lewis e Vathek, um conto Árabe de William Beckford.
            Para Foix, Vathek é a primeira obra do gótico exótico, uma vertente pouco desenvolvida, nascida da influência orientalista que a Europa vivenciou no século XVIII. O Orientalismo, nada mais era que o estudo das culturas orientais como um todo e sem grandes distinções. Foi no fomento desses estudos que o escritor e orientalista Antoine Galland traduziu pela primeira vez, para uma língua ocidental (o francês) o monumental livro d’As Mil e Umas Noites.
            Hoje é inquestionável o lugar cativo que os contos de Sheherazade possuem na cultura popular do ocidente. E Vathek foi um dos primeiros frutos de sua influência, que no futuro viria a desenvolver o gótico exótico com outros livros como Ela de H. R. Haggard, A Jóia das Sete Estrelas de Bram Stoker, The Beetle (O Besouro) de Richard Marsh, o incompleto Azathoth de Lovecraft e obras modernas como The Arabian Nightmare (O Pesadelo Árabe) de Robert Irwin e A Canção de Kali de Dan Simmons.
O Djinn de Paul Mellender
            Seu enredo trata sobre o governante de Samarah,    Vathek, cujo vasto território vai do Oriente Médio à África, tudo isso no século 9 d. C.. Ele era neto ilustre do poderoso Al Harun Al-Raschid, Califa celebrizado pelas Mil e Uma Noites. Hedonista, Vathek construiu para si os Palácios dos Cincos Sentidos, nos quais ele gozava prazeres únicos com seus brinquedinhos e incontáveis esposas. Mimado, não conhecia proibições, limites ou negativas. Diante de quaisquer dessas situações, ele se irava feito um Cuchulain celta e fulminava qualquer pobre diabo que estivesse diante de seus olhos gorgóneos. Capacidade essa que mais parecia uma farsa alimentada pelos súditos diante do poder inconteste que ele detinha. Absoluto e absorto em sua soberania, ele então se atreveu, tal como o Nimrod bíblico, a construir uma torre de medidas megalomaníacas para fins de estudo astrológico, com o óbvio interesse de arrancar às estrelas os segredos sobre seu destino.
            Enquanto isso, Maomé assiste do céu, os destemperos de seu pupilo e chega a conclusão de que a lascívia e a soberba de Vathek cegaram-no por completo, afastando-o dos caminhos de Alá. Por isso, ele devia se deixado a mercê dos Djins (gênios), para sofre um fim semelhante ao de Salomão BenDavi. Daí para frente, Vathek se tornará cada vez pior e indigno.
            Depois de uma série de barbaridades (dignas de cair o queixo) cometidas contra os cidadãos de Samarah, ele parte com sua virulenta mãe e uma corte homérica de escravos e esposas. Após sofrer um grande ataque de feras numa floresta e perder muitos de seus soldados e esposas, Vathek chega as montanhas onde habitam anões islâmicos sob a lideranças do Emir Fakreddin. Vathek logo se envolve com a filha deste, Nouronihar, que estava prometida ao primo, o gentil e efeminado Gulchenrouz.
           
Vathek e Giaour, gravura da edição americanca de 1928
Emir e seus sequazes assistem com desagrado o comportamento de Vahtek para um Califa. Enciumado, Vathek crê que a filha do emir, evita seus pedidos por amar o primo, e pede a seu lacaio Bababalouk, que sequestre o rapaz. A situação se agrava e Vathek ameaça matar o emir, ofendendo as leis da hospitalidade. Nouronihar impede que o califa mate seu pai e dá fuga ao primo. Ameaçado de morte, o emir trama um plano para desaparecer com a filha e o sobrinho, para que Vathek não impeça a união de ambos. Dá uma poção a ambos e forja suas mortes. Nouronihar e seu primo acordam num vale paradisíaco, crendo estarem no purgatório. Mas Na medida dos dias, a filha do emir, fica curiosa pelo que está além do vale, e foge. Acaba encontrando Vathek, que chorava um pesado luto por sua morte. E envolvida, se entrega ao califa e ambos fogem.
            Em Samarah, Carathis buscar pela magia todas as formas de obter notícias do filho, até que consegue comunicar-se com ele e descobre seu affair com Nouronihar. Aborrecida, tenta convencê-lo a assassinar a moça como mais um de seus crimes, mas ele se nega revelando que pretende casar-se com a moça. Ele então se regozija com os crimes cometidos e dizer que espera por isso ganhar a confiança de Eblis e encontrar mais rápido a entrada para seu palácio.
            Depois ele segue viagem perpetrando mais crimes, até que um gênio surge para abrir seus olhos e salvá-lo de seu destino infernal. Ordena que ele volta a Samarah, destrua a torre, renegue Carathis e pregue o islamismo. O califa então zomba do gênio e diz que o amor de sua maior é mais importante que qualquer fé ou temor a Alá. Diante do fato os servos de Vathek o abandonam, restando-lhe como companhia apenas a tola e orgulhosa Nouronihar. Então a narrativa já se aproxima de seu sombrio fim.
            Beckford recorre ao famoso tema bíblico de Jó quando coloca o profeta islâmico Maomé e os gênios a observar Vathek. O paralelo entre Maomé/gênios e Yahweh/Satã, introduz não só o mote da estória, como também todo um discurso ético religioso que perpassa a narrativa. Entretanto diferente de Jó, Vathek é um ímpio incorrigível, e Maomé não está disposto a defendê-lo, como faz Yahweh frente ao demônio. Outra diferença é que quanto a Jó, pesam as dúvidas de Satã sobre suas virtudes espirituais, já Vathek é declarado por Maomé, então no papel de Deus, um apóstata da fé islâmica, um ímpio que deve ser entregue de uma vez aos desejos promíscuos de seu espírito corrupto.
Vathek e Nouronihar de Richard  Westall
            Essa introdução clássica, viria a ser usada como o mesmo êxito por Goethe em Fausto, mostrando que Goethe, não foi o primeiro a se apropriar de uma boa ideia bíblica. Sem dúvida, uma rica tese de literatura poderia ser desenvolvida comparando as três personagens vítimas dos jogos divinos. Aqui se deve fazer uma ressalva: Vathek não é vítima dos jogos divinos, ele é antes o culpado de sua situação derradeira. Não se deve ter pena dele, suas motivações mais íntimas estão alicerçadas apenas sobre a cobiça e a luxúria.
            O califa é infeliz, entediado por criação, desesperado pelo pitoresco. Não deseja mais ser o líder espiritual de sua nação. Vathek é um MacBeth incestuoso que reveza sua própria monotonia até conceber a idéia da torre fálica, que diferente da Torre de Babel, simboliza o extravasamento de seus prazeres carnais que então chegaram ao limite. Devido a isso, ele busca satisfações supra-carnais, partindo em busca dos tesouros ocultos de Eblis, que aqui representam dons espirituais, ainda que corrompidos.
              O maldito e indefinível Giaour (infiel), que está entre o humano e o demoníaco, é tudo o que Vathek esperava para despertá-lo.  Junta-se então a extremista e amoral Carathis, mãe de Vathek e praticante de alta magia negra. Estimulado pela péssima influencia materna, desde a tenra infância, Vathek se entrega as tentações de Giaour e se dispõem a dizimar seu povo em troca de poder. Primeiro sacrificando 50 crianças (meninos). Vê-se aqui, uma bela referência ao vampirismo homossexual, já que essas crianças são meninos pré-púberes, entregues a “fome” de Giaour. Fazendo isso, será recompensado com uma riqueza que os olhos humanos jamais viram, ou os ouvidos jamais ouviram falar: Cravada nas ruínas da profana e pagã Persépolis, destruída por Alexandre o Grande, Vathek encontrará as portas para o reino de Eblis, onde o príncipe caído dos anjos guarda tesouros inimagináveis.
           
Vathek e Giaour, por R. Westall
 A novela continua sendo uma das mais esquisitas do século XVIII. Seria algo como um conto grande ou uma novela pequena. Torna-se uma tarefa difícil classificá-lo, mais fácil então coloca-lo na raiz do gótico exótico, onde por falta de análises mais cuidadosas, muitos outros livros podem entrar. Alguns vêem nele um experimento gótico que deu errado, um subgênero que não vingou. Tendo como única justificativa de seu valor ser a pseudo-biografia de um indivíduo real, feita para contar a biografia de seu criador. Outros desprezam a novela, como o fruto da inteligência obsessiva de Beckford, interessado em nutrir seus hobbies e compensar alguns complexos não vencidos: o ideal de vida orientalista, os conflitos edipianos de amor e ódio pela mãe e a emasculação que desemboca na efebofilia, para não dizer homossexualidade latente.  O que solaparia todas as qualidades edificadoras do conto sobre soberba e destruição.
              Os críticos literários, nunca deixam de assinalar suas estranhezas, como a falta de paragrafação e a ausência de capítulos. Diferente das Mil e Uma Noites, divididas em intermináveis 1001 capítulos, Vathek tem sentenças que podem ir por uma página inteira. De repente com mais da metade do livro lido, Beckford nos revela que Vathek tem um irmão, que de nada serve para a trama. A não ser para justificar as fontes históricas da narrativa. Em um determinado ponto, percebendo que poderia se perder de vez, Beckford visivelmente força uma conclusão para os incidentes e segue em frente.
            O que até então era aberrante, soa contemporâneo hoje. Logo traz à lembrança da escrita claustrofóbica de Saramago, que possui as mesmas idiossincrasias estilistas, mas é aclamado. Tudo isso levanta duras críticas contra Vathek, como obra sem sentido e cheia de incoerências.  Nem As Mil e Uma Noite são assim, há nela regularidade, um mundo de histórias aflora, dentro umas das outras; há uma ordem aparentemente ausente em Vathek. É fácil aborrecer-se com o ritmo frenético da narrativa, é doloroso de ler portanto. Mas Beckford a constrói desse modo, afim de que seja um paralelo da sede espiritual do califa, inquieto e insaciável. Ele não reflete, quer apenas ter seus anseios realizados, sem considerar se vale à pena. Com o Califa, a narrativa quer provocar no leitor, seu lado sequioso, estimulando a desejar mais e mais, até o fim.
          A ação de Vathek, lembra muito a dos quadros de um filme, cujo foco da narrativa muda rapidamente. É em grande parte é vertiginosa, sofrendo alguns momentos de monotonia suportável, justamente por causa da imaginação vibrante de Beckford, que sentindo a aproximação desses momentos, introduz repentinamente novas circunstâncias. O narrador é omnisciente, mas apenas das situações. Ele é incapaz de revelar-nos o que sente as personagens. Isso só nos é possível através delas mesmas.
           
Goucherouz salvo pelo Djinn, por Mahlon Blaine 1928.
Outra particularidade cativante é a ironia que o autor imprime em todo o texto sem deixar escapar nenhum personagem. Há um didactismo dissimulado e, paradoxalmente, a sensualidade é distorcida, abusiva e estereotipada. Há diversas indiscrições homossexuais, a maioria por parte de Giaour (infiel). Tudo é perverso ou passível de corrupção, e justamente por isso hilariante! As situações são aberrantes e excessivamente brutais, entretanto, floresce uma comicidade sincera e impossível de conter. É a displicência e a pureza visceral das personagens, sendo simplesmente humanos. Daí nasce a vontade de rir da desgraça. Por isso Vathek é um manifesto da barbárie em meio ao mundo civilizado que levou 5000 anos para ser o que conhecemos. Já vi muitos leitores relatarem constrangimento ao lê-lo. Pois sentem culpa de compactuar com a comicidade da trama e até sentir afeição pelo Califa canalha.
             Aqui, sob a ótica tupiniquim, Vathek é atualíssimo, sua história é tão insólita e ao mesmo tempo possível. Em termos gerais fala da queda de um homem digno, que renunciando sua fé, recorre a uma série de formas licenciosas, com vistas a conseguir tesouro e poderes sobrenaturais.  Vemos nele toda a corja de chefes de estado corruptos que o Brasil possui. Todos são iguais a Vathek, egoístas, cínicos, convenientes, se escondem sobre a bandeira da religião ou ética, para justificar as injustiças e atrocidades cometidas contra o povo. E o povo? Bem o povo de Samarah é a melhor alegoria para o povo brasileiro, são tolos, esquecem rápido os crimes dos governantes, e ainda apoiam e veneram os vigaristas. E é justamente pela sua metáfora política pode se dizer que pertence mais ao grotesco do que ao horror, mesmo permeado de fantasias aterrorizantes.
             Diferente das outras obras góticas, Vathek é quente e colorido, o dramalhão comum cede lugar a sensualidade perturbadora e barbárie violenta. Essas características, Beckford conseguiu extrair d’As Mil e Uma Noites com excelência. Talvez seu livro seja o único com o mérito de reproduzir com frescor indelével o universo paradoxal de luxuria e sacralidade, civilidade e selvageria do clássico milenar. Entretanto, as linhas góticas estão nele, emoldurando a paisagem narrativa. Vathek é o típico anti-herói gótico, a começar pelo fato de ser estrangeiro, como todos os vilões do gótico inglês são. Há uma maldição eminente, da qual é impossível escapar; Encontramos também o gigastismo personificado pela torre, que é outra tendência gótica; Há ainda a busca pelo antigo, e as localidades típicas: cemitério, ruínas, abismos e templos.
            Foi escrito originalmente em francês, quando da temporada que Beckford passou exilado na França por conta de suas aventuras sexuais pouco ortodoxas na Inglaterra. Num jorro caudaloso de inspiração, criou Vathek em três dias e duas noites.  Algo duvidoso, mas que pouco interessa questionar, quase 400 anos depois de sua primeira edição. Pois Beckford parece ter se dedicado ao estudo biográfico da vida de um califa abássida, Harum Vathiq Bilah, filho de Al-Motassem, que governou pelos anos de 800 d.C., estimulando as artes, pois ele mesmo era um artista notório e governando com extrema autoridade o mundo islâmico de então. Era filho de uma escrava bizantina, com possível origem grega: Qaratis, fiel companheira em suas viagens e decisões. O período de reinado de Vathiq foi assolado por revoltas na Síria e na Palestina, assim como por corrupção de funcionário do governo, que ele prendeu e torturou. Esses e mais alguns fatos nebulosos foram utilizados por Beckford, para construir o Vathek literário, acrescentando muito da sua própria biografia.
esboço de Vathek e Carathis, por Mallet
             Conhecer as aventuras de Vathek é descobrir muito sobre o próprio Beckford, já que ele utilizou a personagem do Califa para projetar a si mesmo. Filho de pais ricos e liberais, cresceu provando do bom e do melhor. Sua mãe Mary Hamilton, filha de nobre parlamentar, era uma mulher moderna e pensamentos muito singulares. De forma que mimou o filho excessivamente. A relação de Beckford e sua mãe seria um tanto edipiana, da mesma forma como ele apresenta Vathek sua mãe castradora. A princesa Carathis, como é chamada no livro, é uma mulher mesquinha, dissimulada e cheia de expedientes para conseguir seus intentos. Está sempre administrando e manipulando os pensamentos de Vathek. Senhora de péssima índole, sem dúvida ela é um retrato vivo de Lady Hamilton.
          Além disso, muitos aspectos de Vathek refletem características de Beckfod, é mimado, perdulário, amante da arte, petulante e ninfomaníaco, guardadas as devidas proporções, já que o Califa é bastante viril, e Beckford tinha suas tendências homossexuais.
E a vida de festas nababescas do Califa, é um retrato da vida de opulência e depravação sexual seguida por Beckford. Ele gostava de decorar sua mansão de Fonthill qual um harém, para receber amigos e amigas de vícios. Tanto que muito de Vathek são, com certeza, memórias dessa vivência.
                O livro seria tanto mais que uma biografia disfarçada: uma confissão do autor, interessado em desculpar-se com a sociedade e com Deus. Além da verve didático-moralista, soa como advertência àqueles que seguem os mesmos caminhos. Lido com distanciamento faz pensar que seu ar de fábula moral, seria fruto da influência de As Mil e Uma Noites, mas pelo contrário, são raros os contos moralistas do clássico. No geral, seu conteúdo é tão feérico, sensual e tão bárbaro quanto o de Vathek. Por isso, é possível crer que a intenção de Beckford seria confessar seus “pecados”. E o leitor de Vathek entenderá o porquê dessa hipótese, quando chegar às páginas finais do livro, que fascinaram e assustaram muitos escritores como Poe, Borges e Mallarmé.
             
página da edição em quadrinho, francesa de Mallet.
Hoje, ele não passa de uma curiosidade literária, talvez pelos motivos apontados pode Lovecraft “a rigidez das formas narrativas”, mas continua sendo lido nas escolas de língua inglesa como conteúdo letivo do romantismo, nada mais além. Outros livros o superam no interesse dos estudiosos em geral e geralmente acaba sendo citado, mas por seu valor histórico de que literário.
Entretanto antecipa muitos aspectos de Fausto de Goethe editado em 1806. Vathek talvez não seja mais interessante devido ao seu forte conteúdo religioso, que compactua com a moralidade cristã. Em um mundo tão relativista e desapegado da fé como o nosso, a novela parece uma anedota medieval ou fruto do pensamento disciplinador de algum doutrinador religioso, disposto a converter quem lê. Garanto que um evangélico extremista ou um católico carismático, passaria por uma catarse poderosa ao lê-lo.
Beckford, belo e jovem
             O livro trata extensamente da moralidade e das virtudes ao aniquila-las com a figura de Vathek, pois a cada página uma catarse gradual envolve o leitor, até o final operístico e trágico. Seja o leitor quem for, não sai incólume da reflexão sobre suas atitudes diante do mundo, e do preço delas no além. Peguei-me muitas vezes chocado com as atitudes de Vathek. Entretanto acabava rindo, por ver nele aspectos da minha natureza: egoísmo, e indiferença pela importância alheia. Algumas vezes na vida, temos vontade de passar por cima dos outros ou enxergamos o próximo como um inseto a ser pisado ou apenas um meio para nossos fins.
                 Bem si se sente assim com freqüência, recomendo ler Vathek e ir depois a um psicólogo. Mas essa identificação não faz de nós monstros. O fato é que há tudo de pior concentrado no Califa. Ele é a epítome da vilania humana, com uma verve cômica. E talvez isso alivie nossa culpa de rir, porque rimos de nós mesmos. Ele é apenas humano, tivesse Beckford criado Vathek como Percy criou Zastrozzi, isto é, frio, trágico e atormentado, o leitor poderia sofrer um distanciamento, que em Vathek não existe. Ele nos convida a vilania, a rir um pouco do nosso lado negro. Encontramos inúmeros “Vatheks” em nosso cotidiano: o chefe déspota, o prefeito da cidade, nossa mãe, o irmão rival, o amigo (da onça). Prontos a se aproveitar, a usar e abusar. Isso quando não somos nós mesmos um Vathek na vida de outro.
                 
edição brasileira da L&PM
Borges chamou Vathek de “o primeiro Inferno realmente atroz  da  literatura”, e explicou sua diferença, do Inferno da Divina Comédia, considerando que a criação de Dante, tinha lá seus fins políticos mais que didático-religiosos, enquanto que Beckford, desejava traduzir o puro horror de uma alma diante de sua condenação eterna. Ele diz ainda:


              “...o  dolente  regno  da  (Divina) Comédia, não  é  um  lugar  atroz;  é  um  lugar  onde  ocorrem  fatos  atrozes.  A  distinção (de Vathek)  é válida”.


            Digam o que disserem leitores e críticos, já se vão 300 anos e Vathek continua interessante, mesmo que não passe de uma curiosidade literária. Não se pode negar a suntuosidade, o estilo elegante, a ironia corrosiva e atualíssima, ainda mais em seus momentos finais, que continuam páginas memoráveis da literatura universal, pela clareza e objetividade. Todo o calor, toda a sinuosidade oriental ainda está nele, sem que as cores tenham esmaecido. E como As Mil e Uma Noites, é um dos poucos livros situados no mundo dos eunucos, gênios e haréns. Ambas são obras raras, solitárias, que fulguram com brilho singular dando oportunidade aos leitores modernos, de apreciar o imaginário, ímpar de uma cultura milenar; Vathek é um pot-pourri das noites árabes.

decoração da capa interna , da edição americana de 1928, ilustração de Mahlon Blaine





Comentários

Postagens mais visitadas