O Bebê de Rosemary: a farsa do Diabo (a realidade de Deus)
Dado o seu tema excessivamente macabro, O Bebê de Rosemary consegue ser um dos livros mais singulares da
literatura universal. Há um charme de farsa
em suas páginas, que talvez não seja equiparado nunca. Não que isso faça dele
um grande livro, mas o torna inteligente e atemporal. Ele possui um equilíbrio
exato e delicado entre as abominações que descreve e o mundo prosaico que as
cerca, e talvez esse seja o maior êxito de Levin, seu savoir fair, isto é, o modo como fez isso. Seu final não poderia
ser diferente, pura farsa, onde não
há remissões e todos se entregam ao absurdo.
Quando tinha apenas 8 anos, via uma propaganda da televisão que anunciava o filme de Polanski para o horário da madrugada. A propaganda mostrava muito pouco, mas as cenas da chamada com Mia Farrow dando um grito estridente e logo após um raio caindo sobre um berço negro foi o suficiente para me deixar apavorado por semanas. Mas havia um fascínio nisso tudo, eu queria saber o que Rosemary tinha visto quando olhou dentro do berço. Essa cena furtiva e alusiva do filme causou verdadeiros transtornos no cinema, porque todos esperavam ver o que ela havia visto, entretanto nunca foi mostrado! Mas o livro descreve muito bem o que ela viu...
Há alguns (muitos) anos atrás, quando descobri que havia o livro, comprei uma bela edição em capa dura com o berço negro na capa, trazendo como móbile um crucifixo invertido. Sentei e li em apenas um lance, tamanho a velocidade dos acontecimentos. Levin soube como urdir a trama, ela é engenhosa, bem construída e o melhor de tudo: sem delongas.
Gary Crawford, estudioso da literatura de horror e dono da famosa Gothic Press, uma editora especializada em clássicos do gênero, afirmou que o livro é uma obra prima, e ele está certo. Mas eu o vejo como uma obra prima muito diferente, ele não é um simples livro de terror, ele é uma farsa moderna. Ele não está engessado na categoria de terror, é uma obra crítica, severa e paraxodalmente cômica. Zomba de nós, de nossas crenças e dos valor que damos as coisas. Para quem não sabe, farsa é um tipo de obra literária com o único fim de zombar descaradamente de algo, alguém ou alguma situação. É uma caricatura literária da vida, uma crítica ao social e ao cotidiano. E para mim, O Bebê de Rosemary é a melhor farsa literária do século XX.
É um livro cruel e irônico e o horror nasce da força dessa ironia e dessa crueldade. Ele é duro com a personagem principal e com o leitor, que se for inteligente e sensível, sofre todas as agonias de Rosemary como estivesse grávido também. Seu escritor, Ira Levin é dramaturgo e romancista de sucesso, outros livros dele também fizeram sucesso pelo viez do macabro: Esposas Perfeitas e Um Beijo Antes de Morrer. O primeiro possui uma adaptação cinematográfica recente (2004) com um elenco de peso: Nicole Kidman, Matthew Broderick, Bette Midler e Glenn Close. Esposas Perfeitas, assim como O Bebê de Rosemary é uma sátira social ao estilo de vida perfeito, particularmente o, american way life, com uma pitada de guerra dos sexos e um grotesco que lembrar os contos clássicos de Hoffmann.
Um Beijo Antes de Morrer é delicioso trailer de vingança ao estilo dos romances noir franceses; seu tema é em resumo: vingança contra vingança! Ele possui também duas adaptações cinematográficas, uma de 1956 e uma de 1991 com a decadente Sean Young e Matt Dillon em uma atuação rara e perfeita.
A estória é bisonhamente simples, do tipo que pensamos: Deus porque eu não pensei nisso? Eu poderia ter escrito esse livro!!! Podemos resumi-la assim: mulher violentada por Satan gesta o Anticristo. Stephen King o considera perfeito, e plenamente arquitetado, exato como um relógio suiço e cortante como papel. Tudo começa com o jovem casal Guy e Rosemary Woodhouse, ele cheio de ambições, ela cheia de esperanças, juntos desejam construir uma bela vida e uma bela família. Ele se mudam para o requintado, mas estranho prédio de Bramford. Esse prédio de estilo negótico possui uma lendária estória de assassinatos relacionados à magia negra. Seu construtor e sua família sempre estiveram envolvidos de jogos de poder e pactos demoníacos para obter riqueza e prestígio social.
O casal é advertido sobre a fama do lugar, mas ambos, vindo de uma cidade pequena do interior, está demasiadamente sedentos da agitada vida social de Nova York para se preocupar com lendas urbanas. Desejam mais que tudo morar em Bramford e como diz o livro: "Guy e Rosemary estavam na lista de espera desde o casamento, mas a demora..."
Ambos são muitos parecidos com a família Freeling de Poltergeist, estão absortos na vida prosaica e imediatista dos tempos modernos, com coca-colas, jeans calvin klein e festas domiciliares repletas de amigos sofisticados, para se preocupar com o sobrenatural. Estão tão presos a vida secular que responde aos seus anseios, que consideram bobagem para e questionar o próprio mistério que cerca a vida, mesmo nas pequenas coisas. E é aí que mora o perigo...
Por diversas vezes durante todo o livro Rosemary se recordará se sua pacata vida de menina do interior, suas raízes, sua fé dominical e o choque dessas coisas, que ela ainda não abandonou por inteiro, com o novo mundo em que vive. Ela tem vergonha, acha que isso e tolice de gente que não conheceu a grandeza do Mundo e das metrópoles. Diferentemente, Guy, seu lindo marido, está totalmente focado na carreira de ator da Broadway. Ele é suave, gentil, perigosamente suscetível, como é comum a qualquer um que deseja chegar rapidamente ao topo.
Em Bramford, são recebidos por outro casal, Minnie e Roman Castevet, dois idosos dedicados, que se mostram vizinhos dotados de uma gentileza pegajosa e possessiva. Curisosamente, velhos gentis é o que não falta em Bramford; todos os inquilinos parecem ter mais de sessenta anos. Rosemary conhece também Terry Gionoffrio, a protegida dos Castevet. Terry na verdade foi tirada da rua pelos velhinhos e está em reabilitação por uso de drogas. Mas logo Terry é encontrada morta na faixada co edifício após se jogar de uma das janelas dos Castevet no 7º andar. Fragilizados, os Castevet direcionam seus cuidados à Rosemary, que sempre passa maior parte do dia sozinha, enquanto Guy está no teatro ensaiando ou se apresentando.
Tanto Rosemary quanto Guy sentem certa aversão pelo casal, mas uma noite acabam cedendo a um convite para jantar. Após a janta, Roman convida Guy para uma "conversa de homens" em seu escritório, e Minnie distrai Rosemary com amenidades femininas. Após isso Guy retorna com Roman e Minnie presenteia a jovem com uma bela corrente que trazia um grande pingente globular de prata em filigrana. Rosemary logo se recorda de ter visto Terry com o mesmo pingente, e que ele emanava um cheiro fétido. Minnie explica que, o pingente vazado traz dentro uma erva medicinal chamada "raiz de tannis". Rosemary aceita o objeto mais por educação que por interesse.
Passados os dias, Guy recebe a insperada notícia de que o papel que tanto desejava em um peça está livre para ele, pois o ator anterior havia ficado inexplicavelmente cego. E com as interferências constantes dos Castevet, já assistidos por Guy, o casal conta que pretendem ter um filho. É aí que começa todo o pesadelo das próximas 200 páginas.
Em uma nova visita, Minnie serve ao casal duas taças de mousse de chocolate. Rosemary logo sente um sabor adstringente sob o chocolate e consegue disfarçadamente jogar fora a guloseima bizarra. Todavia acaba sedada e cai em um sono entrecortado por cômicos e perturbadores sonhos. Sonha estar à deriva no alto mar sob uma cama, depois dentro de um iate com os Kennedy, então surge deitada dentro de uma alcova sombria, iluminada por uma fogueira distante. Se vê nua deitada sem conseguir se mexer. Então surgem das sombras seus caquéticos vizinhos, ridiculamente nus, que a assistem enquanto é tocada por mãos que não vê. Ela vê o marido, mas logo depois seu rosto some entre as sombras e ela se vê penetrada por um grande vulto musculoso. Pela anatomia perceber não ser Guy. Segundo ela, o sexo do seu parceiro misterioso: "...estava imenso, dolorosa, gostosamente imenso".
Pela manhã, tem somente a estranha lembrança de seu sonho ridículo e promíscuo, como se fosse estrupada em público, mas seu corpo esta dolorido e cheio de arranhões medonhos. Daí para frente os Castevet passam a cuidar da agenda de Rosemary com a anuncia cega de Guy, dizem quando sair, com quem se consultar, o que comer (sempre algo horrível). Eles guardam um obscuro interesse por sua gravidez. E até os outros vizinhos o fazem sorrateiramente.
Pelos três primeiros longos meses de gestação, Rosemary enfrenta um calvário aterrador. Uma agonia sem fim a domina, cresce dentro dela. E se vê refém dos vizinhos enquanto Guy se comporta como se tudo o que ela estivesse passando fosse normal. Um terror sem fim, uma gravidez anormal. Um feto que enquanto cresce a consome a ponto dela começar a beirar o delírio. Surge então Hutch, seu amigo (e antigo amor), lhe faz uma visita e fica chocado com seu estado e tenta convencê-la a ver outro obstetra. Entretanto, ela se mantém firme na sugestão do médico indicado pelos Castevet, que assegura que a dor passará. Ela se refere aos cuidados esmerados dos Castevet e fala da raiz de tannis.
Hutch vai embora incomodado, principalmente ao ouvir fala da planta e decide pesquisar. Então Rosemary cai em coma devido a dor violenta: "... procurou enganar a si mesma quanto a sua existência (da dor). Até agora a dor tinha estado dentro dela; agora ela é que estava dentro da dor". Quando finalmente acordou, a dor havia cessado, como se nunca houvesse existido. Ela sentou comeu, bebeu e saiu para comprar roupinhas. Daí para frente a gravidez foi perfeita. Ele engordou, recobrou a cor e a beleza então perdida.
Foi então que recebeu a notícia da mor de Hutch e no velório recebeu um embrulho com um livro de magia negra e um bilhete dizendo "o nome é um anagrama". Hutch descobrira algo e tentou avisá-la e então a trama dá outra reviravolta. Mas só vai saber que nome é um anagrama quem ler o livro ou assistir o filme. Chega de contar a estória...
Há muito mais para se descobrir nas páginas. É interessante saber como Ira Levin pensou na trama, ele relaciona os acontecimentos da vida de Rosemary com a ida do Papa aos Estados Unidos, a coloca sempre diante de um confronto com seu passado, sua fé abandonada. Há um leve questionamento nietzchiniano sobre a existência de Deus, mas de forma bem original, à partir da consideração sobre a existência do Diabo. O que Levin quer dizer é que é fácil duvidar da existência de Deus quando se pensa apenas nele, mas é difícil não crer no Diabo, e se damos crédito a sua existência, automaticamente temos que afirmar que Deus também existe, pois a imagem e natureza de um não tem sentido sem a do outro.
Levin dilui a reflexão religiosa e a derrama por todas as páginas. Rosemary nega a crença em Deus, portanto não consegue ver o complô diabólico do qual é vítima. O mesmo acontece com o leitor, mas em um nível diferente. Tomamos como base o absurdo da história, tanto pelo terror que sugere quanto pelo absurdo cômico do nascimento do Anticristo em nosso tempo, tão moderno, tão empírico e científico, livre de superstições e crenças. Daí o fato de parecer uma farsa, porque para nós, mentes livres e modernas, parece ridículo simplesmente supor que isso venha a acontecer!
Rosemary e o leitor são confrontados com seu próprio mundo vazio de sentido, sem crenças, sem noção do Todo e da presença do divino, seja ela boa ou má. Algo bem ao estilo das reflexões filosóficas de Richard Tarnas, que considera que a ciência, através das descobertas de Copérnico, nos roubou o contato com o divino. Para Tarnas a ciência desmitificou e desmistificou o Mundo, a ponto de tornar nossas vidas vazias de significado, de um verdadeiro motivo de Ser, seja ele de fé pagã ou cristã.
Tudo perece premeditado, mas ao mesmo tempo ocasional: a noite da concepção do bebê exatamente no dia da chegada do Papa; uma reportagem sobre a existência de Deus na Times; a morte sem explicação de Terry, a morte de Hutch. A todo o momento, até a última linha, Levin nos mantém suspensos nesse jogo magistral entre a verdade e a mentira sobre o bebê e sobre a existência de Deus e do Diabo. Para o bem da consciência de Rosemary, acossada e dominada pela certeza de uma conspiração (e da nossa) esperamos que tudo seja loucura. Que todos os acontecimento estranhos tenham sido ocasionais e livres da lógica do mau. Portanto não há, no universo do livro, nada mais factual do que a Esperança. Até hoje nunca li um livro que explorasse tão cirurgicamente a noção de esperança e a necessidade de sua existência, para assegurar, ainda que seja apenas uma possibilidade da existência de Deus. Reflexo disso é o nome que Rosemary escolhe para o filho "Andrew John", que são nomes de dois apóstolos de Cristo. Tudo parece perdido, mas não para Rosemary, enfim recobra sua fé e crê que há um mistério de Deus em tudo o que aconteceu.
Assim crias-se uma linha tênue entre fé e incredulidade que tem efeito impactante sobre o foro íntimo do próprio leitor. Isso nos obriga a esperar por uma explicação libertadora, enquanto criamos uma empatia nada vulgar por Rosemary. A tal ponto que, mesmo cheios de repulsas, somos capazes de entender a atitude desesperada e paradoxal da heroína no final do livro, pois ela brota de um dos instintos mais básicos que o homem experimenta: o maternal. Não bastasse toda a loucura de conspiração, os terrores escondidos em cada pequena ação aparentemente sem propóstio, Levin nos golpeia na cabeça com mais esse conflito: Rosemary é uma heroína? ou não passa de uma vadia que merece tudo o que lhe aconteceu?
Mas mesmo assim, Levin não se leva à sério, ele não está disposto a nos doutrinar seja qual for sua fé particular, e isso salva o livro de um desastre temático! Ele narra de forma despreocupada, e por isso o livro é instigante e cômico. Muitos detestam o final e vêem nele um anti-clímax da envergadura de Drácula. Mas como eu sempre digo precisamos abrir nossas mentes e não esperar pelo mais fácil. Se queremos boas estórias não podemos contar sempre com o final holiwoodiano cheio de som e fúria. Há uma poderosa, perigosa e paradoxal reflexão no final do livro, da qual ninguém escapa, a menos que se negue pensar nela: no lugar de Rosemary, faríamos a mesma coisa por amor? Não é a suprema força do Amor que II Coríntios evoca em se capítulo 13? A mesma coisa não diz Camões em seu soneto Amor é um Fogo que Arde sem se Ver? E tudo isso se resume a uma frase das écoglas de Virgílio: Omina Vincit Amor!
Quanto ao nascimento do suposto Anticristo, há a eterna pergunta que ecoa: mas e se isso fosse possível? mas e se? Ora, ao mesmo Levin nos dá uma versão bem realista de como isso aconteceria em nosso Mundo moderno. Um acontecimento de envergadura épica e bíblica cercado de todas as idiossincrasias da vida secular de hoje: dietas, decoração do quarto do bebe, festinhas em casa, vizinhos xeretas. E mesmo assim ele ainda nos sugere que por detrás de qualquer coisa pode estar o mal.
Não foi por nada que O Bebê de Rosemary vendeu 4 milhões de cópias e garantiu para sempre o primeiro lugar na lista de best-sellers da década de 60. O livro é reflexo de de seu tempo, rápido, leve, sem humanidade (como manequins de loja), com tudo bem encaixado, alegoriza a visão do homem de 60 sobre a fé e a tecnologia que levou à Lua. Um momento em que uma grande onda de ecumenismo invadia o conteúdo dos livros, jornais e revistas. Enquanto isso, a incerteza sobre a fé, comum frente aos avanços da tecnologia, permitia a mudança de valores rápida, que redefiniu o pensamento secular e os dogmas religiosos e desembocou nos anos delirantes de 70 do século XX.
Esta é a forma mais simples e pura do conceito cristão: o mal pode estar em tudo! E mais uma vez Levin levanta a bola para que o próprio leitor dê a cortada: o mal pode se esconder só sobre a distante e mítica figura do demônio? Sob a imagem dos ditadores como Hitler ou Mussolini? Ou dos seriais killers ou ladrões que nos cercam em becos?
Nossos vizinhos talvez não sejam parte de uma seita satânica, mas por trás de suas paredes podem fazer coisas horríveis, impensáveis. Ou até nós mesmos, por um instante somos capazes de pensar ou agir de foram quase diabólica: o desejo de matar, ou desejo de matar com requinte ou então a leve e torpe excitação sexual, com certo requalque, que se pode sente ao ler a descrição de Rosemary ao ser penetrada por uma coisa vinda do além. O prazer pelo macabro, é uma das perversões humanas e é tão comum quanto gostar de Coca-cola.
Voltando um pouco, para falar sobre algo que sempre me atraia muito nos livros, os nomes dos personagens tem todo o significado a começar por Guy, nome do marido de Rosemary. Guy vem do francês guie, isto é: o guia. Ao mesmo tempo que em inglês serve para referir-se a companheiros ou amigos. Guy então é o perfeito companheiro da descrente Rosemary. Rosemary é a agregação de Rosa e Maria, há aqui
uma referência católica a Virgem Maria e à rosa que é um símbolo pagão de Afrodite, deusa grega do amor e do sexo. Outro nome interessante é o da raiz que Minnie dá para Rosemary "tannis", tal planta não passa de uma criação de Levin, entretanto recorda uma planta que realmente existe, a assa fétida, um tempero saboroso mas fedorento que também recebe outros nomes curiosos como "esterco-do-diabo". (Para mim fica claro que Minnie colocou tannis dentro do mousse de Rosemary.) Alguns vêem em tannis uma corruptela que Levin criou à partir de satan(nis), que é a forma latina do nome Satã.
No mais deixo à curiosidade de quem quiser ler o livro, eu já disse demais! Eu aconselho realmente a ler o livro ao invés de simplesmente ver o filme, que não fica a dever nada. Entretanto o poder da imaginação sobre as páginas é sensacional. Pretendo ainda ler a continuação (sim tem uma continuação), escrita pelo próprio Levin. já li muitas críticas dizendo que é um desastre, mas mesmo assim eu prefiro tirar minhas próprias conclusões e aconselho vocês a fazer o mesmo.
Ah! foi lançada no começo do ano uma minissérie em dois capítulos que readaptou o livro e fez interessantes mudanças na trama original. Foi recebida com críticas divididas, mas fazer o download e assistir. Zoe Saldana interpreta Rosemary e o cenário vintage-gore é nada menos que Paris!
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ilustração paródia de Rosemary e o Bebê. |
Há alguns (muitos) anos atrás, quando descobri que havia o livro, comprei uma bela edição em capa dura com o berço negro na capa, trazendo como móbile um crucifixo invertido. Sentei e li em apenas um lance, tamanho a velocidade dos acontecimentos. Levin soube como urdir a trama, ela é engenhosa, bem construída e o melhor de tudo: sem delongas.
Gary Crawford, estudioso da literatura de horror e dono da famosa Gothic Press, uma editora especializada em clássicos do gênero, afirmou que o livro é uma obra prima, e ele está certo. Mas eu o vejo como uma obra prima muito diferente, ele não é um simples livro de terror, ele é uma farsa moderna. Ele não está engessado na categoria de terror, é uma obra crítica, severa e paraxodalmente cômica. Zomba de nós, de nossas crenças e dos valor que damos as coisas. Para quem não sabe, farsa é um tipo de obra literária com o único fim de zombar descaradamente de algo, alguém ou alguma situação. É uma caricatura literária da vida, uma crítica ao social e ao cotidiano. E para mim, O Bebê de Rosemary é a melhor farsa literária do século XX.
É um livro cruel e irônico e o horror nasce da força dessa ironia e dessa crueldade. Ele é duro com a personagem principal e com o leitor, que se for inteligente e sensível, sofre todas as agonias de Rosemary como estivesse grávido também. Seu escritor, Ira Levin é dramaturgo e romancista de sucesso, outros livros dele também fizeram sucesso pelo viez do macabro: Esposas Perfeitas e Um Beijo Antes de Morrer. O primeiro possui uma adaptação cinematográfica recente (2004) com um elenco de peso: Nicole Kidman, Matthew Broderick, Bette Midler e Glenn Close. Esposas Perfeitas, assim como O Bebê de Rosemary é uma sátira social ao estilo de vida perfeito, particularmente o, american way life, com uma pitada de guerra dos sexos e um grotesco que lembrar os contos clássicos de Hoffmann.
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Edição americana de 1960. |
A estória é bisonhamente simples, do tipo que pensamos: Deus porque eu não pensei nisso? Eu poderia ter escrito esse livro!!! Podemos resumi-la assim: mulher violentada por Satan gesta o Anticristo. Stephen King o considera perfeito, e plenamente arquitetado, exato como um relógio suiço e cortante como papel. Tudo começa com o jovem casal Guy e Rosemary Woodhouse, ele cheio de ambições, ela cheia de esperanças, juntos desejam construir uma bela vida e uma bela família. Ele se mudam para o requintado, mas estranho prédio de Bramford. Esse prédio de estilo negótico possui uma lendária estória de assassinatos relacionados à magia negra. Seu construtor e sua família sempre estiveram envolvidos de jogos de poder e pactos demoníacos para obter riqueza e prestígio social.
O casal é advertido sobre a fama do lugar, mas ambos, vindo de uma cidade pequena do interior, está demasiadamente sedentos da agitada vida social de Nova York para se preocupar com lendas urbanas. Desejam mais que tudo morar em Bramford e como diz o livro: "Guy e Rosemary estavam na lista de espera desde o casamento, mas a demora..."
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ilustração de propaganda do edifício Bramford com Rosemary e Guy. |
Por diversas vezes durante todo o livro Rosemary se recordará se sua pacata vida de menina do interior, suas raízes, sua fé dominical e o choque dessas coisas, que ela ainda não abandonou por inteiro, com o novo mundo em que vive. Ela tem vergonha, acha que isso e tolice de gente que não conheceu a grandeza do Mundo e das metrópoles. Diferentemente, Guy, seu lindo marido, está totalmente focado na carreira de ator da Broadway. Ele é suave, gentil, perigosamente suscetível, como é comum a qualquer um que deseja chegar rapidamente ao topo.
Em Bramford, são recebidos por outro casal, Minnie e Roman Castevet, dois idosos dedicados, que se mostram vizinhos dotados de uma gentileza pegajosa e possessiva. Curisosamente, velhos gentis é o que não falta em Bramford; todos os inquilinos parecem ter mais de sessenta anos. Rosemary conhece também Terry Gionoffrio, a protegida dos Castevet. Terry na verdade foi tirada da rua pelos velhinhos e está em reabilitação por uso de drogas. Mas logo Terry é encontrada morta na faixada co edifício após se jogar de uma das janelas dos Castevet no 7º andar. Fragilizados, os Castevet direcionam seus cuidados à Rosemary, que sempre passa maior parte do dia sozinha, enquanto Guy está no teatro ensaiando ou se apresentando.
Tanto Rosemary quanto Guy sentem certa aversão pelo casal, mas uma noite acabam cedendo a um convite para jantar. Após a janta, Roman convida Guy para uma "conversa de homens" em seu escritório, e Minnie distrai Rosemary com amenidades femininas. Após isso Guy retorna com Roman e Minnie presenteia a jovem com uma bela corrente que trazia um grande pingente globular de prata em filigrana. Rosemary logo se recorda de ter visto Terry com o mesmo pingente, e que ele emanava um cheiro fétido. Minnie explica que, o pingente vazado traz dentro uma erva medicinal chamada "raiz de tannis". Rosemary aceita o objeto mais por educação que por interesse.
Passados os dias, Guy recebe a insperada notícia de que o papel que tanto desejava em um peça está livre para ele, pois o ator anterior havia ficado inexplicavelmente cego. E com as interferências constantes dos Castevet, já assistidos por Guy, o casal conta que pretendem ter um filho. É aí que começa todo o pesadelo das próximas 200 páginas.
Em uma nova visita, Minnie serve ao casal duas taças de mousse de chocolate. Rosemary logo sente um sabor adstringente sob o chocolate e consegue disfarçadamente jogar fora a guloseima bizarra. Todavia acaba sedada e cai em um sono entrecortado por cômicos e perturbadores sonhos. Sonha estar à deriva no alto mar sob uma cama, depois dentro de um iate com os Kennedy, então surge deitada dentro de uma alcova sombria, iluminada por uma fogueira distante. Se vê nua deitada sem conseguir se mexer. Então surgem das sombras seus caquéticos vizinhos, ridiculamente nus, que a assistem enquanto é tocada por mãos que não vê. Ela vê o marido, mas logo depois seu rosto some entre as sombras e ela se vê penetrada por um grande vulto musculoso. Pela anatomia perceber não ser Guy. Segundo ela, o sexo do seu parceiro misterioso: "...estava imenso, dolorosa, gostosamente imenso".
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cena do filme de Polansky em que Rosemary sonha estar no mar sobre uma cama. |
Pela manhã, tem somente a estranha lembrança de seu sonho ridículo e promíscuo, como se fosse estrupada em público, mas seu corpo esta dolorido e cheio de arranhões medonhos. Daí para frente os Castevet passam a cuidar da agenda de Rosemary com a anuncia cega de Guy, dizem quando sair, com quem se consultar, o que comer (sempre algo horrível). Eles guardam um obscuro interesse por sua gravidez. E até os outros vizinhos o fazem sorrateiramente.
Pelos três primeiros longos meses de gestação, Rosemary enfrenta um calvário aterrador. Uma agonia sem fim a domina, cresce dentro dela. E se vê refém dos vizinhos enquanto Guy se comporta como se tudo o que ela estivesse passando fosse normal. Um terror sem fim, uma gravidez anormal. Um feto que enquanto cresce a consome a ponto dela começar a beirar o delírio. Surge então Hutch, seu amigo (e antigo amor), lhe faz uma visita e fica chocado com seu estado e tenta convencê-la a ver outro obstetra. Entretanto, ela se mantém firme na sugestão do médico indicado pelos Castevet, que assegura que a dor passará. Ela se refere aos cuidados esmerados dos Castevet e fala da raiz de tannis.
Hutch vai embora incomodado, principalmente ao ouvir fala da planta e decide pesquisar. Então Rosemary cai em coma devido a dor violenta: "... procurou enganar a si mesma quanto a sua existência (da dor). Até agora a dor tinha estado dentro dela; agora ela é que estava dentro da dor". Quando finalmente acordou, a dor havia cessado, como se nunca houvesse existido. Ela sentou comeu, bebeu e saiu para comprar roupinhas. Daí para frente a gravidez foi perfeita. Ele engordou, recobrou a cor e a beleza então perdida.
Foi então que recebeu a notícia da mor de Hutch e no velório recebeu um embrulho com um livro de magia negra e um bilhete dizendo "o nome é um anagrama". Hutch descobrira algo e tentou avisá-la e então a trama dá outra reviravolta. Mas só vai saber que nome é um anagrama quem ler o livro ou assistir o filme. Chega de contar a estória...
Há muito mais para se descobrir nas páginas. É interessante saber como Ira Levin pensou na trama, ele relaciona os acontecimentos da vida de Rosemary com a ida do Papa aos Estados Unidos, a coloca sempre diante de um confronto com seu passado, sua fé abandonada. Há um leve questionamento nietzchiniano sobre a existência de Deus, mas de forma bem original, à partir da consideração sobre a existência do Diabo. O que Levin quer dizer é que é fácil duvidar da existência de Deus quando se pensa apenas nele, mas é difícil não crer no Diabo, e se damos crédito a sua existência, automaticamente temos que afirmar que Deus também existe, pois a imagem e natureza de um não tem sentido sem a do outro.
Levin dilui a reflexão religiosa e a derrama por todas as páginas. Rosemary nega a crença em Deus, portanto não consegue ver o complô diabólico do qual é vítima. O mesmo acontece com o leitor, mas em um nível diferente. Tomamos como base o absurdo da história, tanto pelo terror que sugere quanto pelo absurdo cômico do nascimento do Anticristo em nosso tempo, tão moderno, tão empírico e científico, livre de superstições e crenças. Daí o fato de parecer uma farsa, porque para nós, mentes livres e modernas, parece ridículo simplesmente supor que isso venha a acontecer!
Rosemary e o leitor são confrontados com seu próprio mundo vazio de sentido, sem crenças, sem noção do Todo e da presença do divino, seja ela boa ou má. Algo bem ao estilo das reflexões filosóficas de Richard Tarnas, que considera que a ciência, através das descobertas de Copérnico, nos roubou o contato com o divino. Para Tarnas a ciência desmitificou e desmistificou o Mundo, a ponto de tornar nossas vidas vazias de significado, de um verdadeiro motivo de Ser, seja ele de fé pagã ou cristã.
Tudo perece premeditado, mas ao mesmo tempo ocasional: a noite da concepção do bebê exatamente no dia da chegada do Papa; uma reportagem sobre a existência de Deus na Times; a morte sem explicação de Terry, a morte de Hutch. A todo o momento, até a última linha, Levin nos mantém suspensos nesse jogo magistral entre a verdade e a mentira sobre o bebê e sobre a existência de Deus e do Diabo. Para o bem da consciência de Rosemary, acossada e dominada pela certeza de uma conspiração (e da nossa) esperamos que tudo seja loucura. Que todos os acontecimento estranhos tenham sido ocasionais e livres da lógica do mau. Portanto não há, no universo do livro, nada mais factual do que a Esperança. Até hoje nunca li um livro que explorasse tão cirurgicamente a noção de esperança e a necessidade de sua existência, para assegurar, ainda que seja apenas uma possibilidade da existência de Deus. Reflexo disso é o nome que Rosemary escolhe para o filho "Andrew John", que são nomes de dois apóstolos de Cristo. Tudo parece perdido, mas não para Rosemary, enfim recobra sua fé e crê que há um mistério de Deus em tudo o que aconteceu.
Assim crias-se uma linha tênue entre fé e incredulidade que tem efeito impactante sobre o foro íntimo do próprio leitor. Isso nos obriga a esperar por uma explicação libertadora, enquanto criamos uma empatia nada vulgar por Rosemary. A tal ponto que, mesmo cheios de repulsas, somos capazes de entender a atitude desesperada e paradoxal da heroína no final do livro, pois ela brota de um dos instintos mais básicos que o homem experimenta: o maternal. Não bastasse toda a loucura de conspiração, os terrores escondidos em cada pequena ação aparentemente sem propóstio, Levin nos golpeia na cabeça com mais esse conflito: Rosemary é uma heroína? ou não passa de uma vadia que merece tudo o que lhe aconteceu?
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cena do filme na qual Rosemary vê finalmente o bebê. |
Quanto ao nascimento do suposto Anticristo, há a eterna pergunta que ecoa: mas e se isso fosse possível? mas e se? Ora, ao mesmo Levin nos dá uma versão bem realista de como isso aconteceria em nosso Mundo moderno. Um acontecimento de envergadura épica e bíblica cercado de todas as idiossincrasias da vida secular de hoje: dietas, decoração do quarto do bebe, festinhas em casa, vizinhos xeretas. E mesmo assim ele ainda nos sugere que por detrás de qualquer coisa pode estar o mal.
Não foi por nada que O Bebê de Rosemary vendeu 4 milhões de cópias e garantiu para sempre o primeiro lugar na lista de best-sellers da década de 60. O livro é reflexo de de seu tempo, rápido, leve, sem humanidade (como manequins de loja), com tudo bem encaixado, alegoriza a visão do homem de 60 sobre a fé e a tecnologia que levou à Lua. Um momento em que uma grande onda de ecumenismo invadia o conteúdo dos livros, jornais e revistas. Enquanto isso, a incerteza sobre a fé, comum frente aos avanços da tecnologia, permitia a mudança de valores rápida, que redefiniu o pensamento secular e os dogmas religiosos e desembocou nos anos delirantes de 70 do século XX.
Esta é a forma mais simples e pura do conceito cristão: o mal pode estar em tudo! E mais uma vez Levin levanta a bola para que o próprio leitor dê a cortada: o mal pode se esconder só sobre a distante e mítica figura do demônio? Sob a imagem dos ditadores como Hitler ou Mussolini? Ou dos seriais killers ou ladrões que nos cercam em becos?
Nossos vizinhos talvez não sejam parte de uma seita satânica, mas por trás de suas paredes podem fazer coisas horríveis, impensáveis. Ou até nós mesmos, por um instante somos capazes de pensar ou agir de foram quase diabólica: o desejo de matar, ou desejo de matar com requinte ou então a leve e torpe excitação sexual, com certo requalque, que se pode sente ao ler a descrição de Rosemary ao ser penetrada por uma coisa vinda do além. O prazer pelo macabro, é uma das perversões humanas e é tão comum quanto gostar de Coca-cola.
Voltando um pouco, para falar sobre algo que sempre me atraia muito nos livros, os nomes dos personagens tem todo o significado a começar por Guy, nome do marido de Rosemary. Guy vem do francês guie, isto é: o guia. Ao mesmo tempo que em inglês serve para referir-se a companheiros ou amigos. Guy então é o perfeito companheiro da descrente Rosemary. Rosemary é a agregação de Rosa e Maria, há aqui
uma referência católica a Virgem Maria e à rosa que é um símbolo pagão de Afrodite, deusa grega do amor e do sexo. Outro nome interessante é o da raiz que Minnie dá para Rosemary "tannis", tal planta não passa de uma criação de Levin, entretanto recorda uma planta que realmente existe, a assa fétida, um tempero saboroso mas fedorento que também recebe outros nomes curiosos como "esterco-do-diabo". (Para mim fica claro que Minnie colocou tannis dentro do mousse de Rosemary.) Alguns vêem em tannis uma corruptela que Levin criou à partir de satan(nis), que é a forma latina do nome Satã.
No mais deixo à curiosidade de quem quiser ler o livro, eu já disse demais! Eu aconselho realmente a ler o livro ao invés de simplesmente ver o filme, que não fica a dever nada. Entretanto o poder da imaginação sobre as páginas é sensacional. Pretendo ainda ler a continuação (sim tem uma continuação), escrita pelo próprio Levin. já li muitas críticas dizendo que é um desastre, mas mesmo assim eu prefiro tirar minhas próprias conclusões e aconselho vocês a fazer o mesmo.
Ah! foi lançada no começo do ano uma minissérie em dois capítulos que readaptou o livro e fez interessantes mudanças na trama original. Foi recebida com críticas divididas, mas fazer o download e assistir. Zoe Saldana interpreta Rosemary e o cenário vintage-gore é nada menos que Paris!
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anúncio da NBC sobre a minissérie baseada no livro. |
Eu gostei muito do seu blog e desse post, eu fiquei extremamente instigada a ler o livro (vi o filme). Você descreve tudo tão bem que quem lê sente vontade de correr e comprar um exemplar para sanar a curiosidade, e eu gostei especialmente dos desenhos no post, estou tentanda a fazer uma releitura de cada um. Continue escrevendo e parabéns u.u
ResponderExcluirOlá Vivian, muito obrigado por comentar. Fico muito contente de gerar curiosidade, é forma de mostrar às editoras, o que queremos que seja publicado! Assim que voltar a visitar o blog, por favor, diga o que pensou! O interesse é falar mais e mais sobre outros tantos livros que existem! Abraço!
ResponderExcluirO Livreiro!